terça-feira, outubro 19, 2010

Clóvis Da Rolt

(http://escafandro-respire.blogspot.com/2008_09_01_archive.html)

(In) utilidades

Não tenho vocação para a seriedade. Não me levem a sério. Não me chamem pelo nome, essa coisa insolúvel que adestra o ouvido e sempre me coloca entre os primeiros na lista dos mortos. Não, eu não quero servir um copo d’água, tampouco dar uma demão de tinta numa parede ou pagar o plano de saúde. Esbocei, às pressas, o meu projeto de vida. Tenho até o resto dos meus dias para executá-lo. Eis o que quero para a minha vida: Tatuar uma prece no vento. Fazer anéis com peixes dourados. Blasfemar em três línguas para um tríplice perdão. Guardar no bolso a própria sombra. Descobrir o gene da ausência. Nascer duplo para não precisar de espelhos. Ajustar as calotas polares aos pneus dos carros. Alfabetizar um pássaro para descobrir sua caligrafia. Extrair espinhos do umbigo da lua. Fecundar a areia para erigir castelos. Escrever uma bíblia para ateus. Declarar amor a um desconhecido. Esculpir um cemitério na garganta. Esboçar o retrato-falado do vermelho. Violentar um vidro de insônia. Imitar o gesso das pálpebras. Apertar a fivela do tempo. Guardar a morte numa gaveta. Orquestrar os parafusos da rua. Pentear um canteiro de violetas. Celebrar a liturgia dos fósseis. Trapacear o ensinamento das pérolas. Beber um rio sem gelo. Tricotar um gorro de arame farpado. Legalizar a procriação dos ácaros. Despir um santo para atestar sua humanidade. Queimar os livros que contêm a palavra fogo. Castigar o sorriso por não usar meias. Bordar um dicionário nos dedos. Desnudar o sexo das camas. Pagar a verdade em prestações. Soletrar o pecado dos sapatos. Engravidar relógios. Roer a margem do silêncio. Testemunhar o suicídio das pedras. Interpretar a gagueira da mímica. Confundir os pés da maresia. Ensinar álgebra aos vaga-lumes. Escrever um livro com os cabelos. Emascular o demônio para o triunfo da brisa. Tatear o teto da lã. Forjar o portão do espírito. Desdenhar a miséria dos cobertores. Afagar a língua dos violinos. Masturbar a dobradiça dos verbos. Engolir o sino da noite. Perscrutar o vício das plantas. Aprender a psicologia das esponjas. Projetar uma lápide para a água. Envenenar as unhas do aço. Costurar dez sóis num travesseiro. Tirar a neblina do banho. Estudar a anatomia do veludo. Construir uma igreja no ventre do anzol. Decretar a democracia dos tijolos. Saciar a fome com palavras. Amamentar o sono com sangue. Polir o assoalho do crepúsculo. Dissolver o guache do oxigênio. Filtrar a angústia pelos rins. Aprisionar Deus num cofre. Plantar algodão no oceano. Aderir à religião das aranhas. Deixar recados no mural dos calcanhares. Embriagar telefones. Esperar a visita dos cílios. Contar piadas ao detector de mentiras. Processar as portas por calúnia. Procurar a justiça num tonel de dentes. Despachar a boca pelo correio. Encomendar um féretro para os martelos. Construir uma ponte com as vértebras da luz. Guerrilhar na fronteira dos tapetes. Acompanhar o cortejo das montanhas. Cunhar moedas no tímpano. Parar um trem-bala com um bocejo. Dobrar o joelho dos postes. Curar a anemia das brasas. Proteger o amor com uma muralha de pó. Dançar com um vestido de escamas. Subir ao topo do fim.

Publicado no Jornal Gazeta de Bento Gonçalves, em 23/09/08